Circunvalação
estrada da circunvalação
ando às voltas que nem um pião
nas circunvizinhanças do teu coração
(Sérgio Godinho)
Não sabemos o que seja o amor. Por isso falamos sobre ele. Por isso temos medo dele. Por isso o procuramos e o evitamos, com a mesma ânsia e o mesmo receio. Não sabemos o que seja o amor. Sabemos o que são coisas simples. Ou imaginamos saber. Coisas de que não falamos, coisas que não problematizamos. Coisas que estão apenas aí. Que são aquilo que são e nada mais do que isso. Sabemos o que é uma pedra. Reconhecemos uma quando a vimos. Uma pedra é só uma pedra. Nada mais. Agora imaginemos que toda a gente começava a discutir sobre pedras, que se escrevia tratados sobre pedras, que se daria conferências sobre pedras, que se organizava debates sobre pedras. Deixaríamos de saber o que é uma pedra. Não porque passássemos a saber menos sobre as pedras, mas precisamente porque saberíamos mais. O amor está sempre presente nas nossas vidas. Não nos conseguimos ver livres dele. Somos, no Ocidente, filhas e filhos de uma religião que ensinou que Deus era amor, no seu desejo, talvez ingénuo, talvez perverso, de tornar o amor Deus. As pedras, ao que parece, mas falamos pouco sobre elas, não amam, o que não impediu um escritor português, sobejamente conhecido, de dizer num título de um livro seu que haveria de amar uma pedra. Se esse poderia ou não vir a ser um amor correspondido é coisa que desconhecemos. Teríamos que falar mais sobre pedras para saber se uma pedra pode amar, ou ao menos para deixarmos de saber que uma pedra não pode amar. De amor falamos muito. É uma das palavras mais usadas e abusadas. Pervertidas também. As pessoas que não acreditam em realidades transcendentes não deviam interrogar-se sobre a sua existência. Basta pensar no amor, para que tudo o resto, desde o país das maravilhas até ao reino dos céus, se torne coisas comuns. Coisas tão comuns como pedras. A pedra está ali, existe antes de nós, partindo do pressuposto que existe, e depois de nós continuará a existir. Talvez por isso as pedras não precisem de amar, Não precisam de ter nenhuma ilusão de vida eterna. Mesmo morrendo, que ao que parece nada fica sendo sempre aquilo que num determinado momento é, não precisam de amar, pois até prova em contrário, mas sabemos pouco sobre pedras, nenhuma pedra sabe que vai morrer. Os animais, ao que parece, também não, ainda que os cisnes cantem antes do momento final, quando parecem estar sabendo que a sua hora chegou, cantam e algum poeta mais amante dos animais poderia ver nesse canto o nascimento do amor. Os seres humanos, esses, sabem que vão morrer. Sabem-no desde muito cedo. E por isso precisam do amor. Para que a vida, que é penosa e breve, tenha um sentido qualquer que a ultrapasse. Somos os fugitivos da morte. Viver talvez nem seja outra coisa. O amor é só um abrigo que procuramos para não ter que continuar a fugir. E por isso, no fundo, queremos um amor eterno, queremos um amor que dure sempre, mesmo que seja apenas eterno enquanto dure, absurdo que parece possível no reino do amor, mesmo que o não seja. Queremos amar uma pedra, porque a pedra estará sempre ali enquanto o nosso amor durar. Amar uma pessoa é outra coisa e mais difícil ao que parece. Amar é desejar ser amado, já foi dito. Mas desejar ser amado não parece ser verdadeiramente amar. Seria talvez mais eficaz amar o amor. E ser esse amor no nosso amor. Todo o amor é imitação de um amor maior. Não amaríamos se o amor não nos antecedesse. Se o amor não estivesse já presente antes do nosso amor. A existência do amor é condição prévia à expressão do nosso amor. Por isso dizemos que o amor não se explica. Porque só o amor poderia explicar o amor.