Vai à merda!

Naquele dia podia ter-te dito que o nosso amor já não me fazia nem viver nem respirar, mas ao invés preferi o silêncio. Não sei porquê. Há coisas em nós que desconhecemos ou que queremos desconhecer, como se um outro eu, poderoso, comandasse mais do que nós. Deve ser o medo, ou esta educação filha da puta que tivemos, ou as duas coisas. Também nunca te disse - ou disse ?- que nunca gostei de viver nesta casa, nem nesta cidade, e ainda menos nesta vida. Não que não goste de viver. O que não gostei foi de viver na tua loucura, no teu egoísmo, nas tuas desculpas, no teu cheiro sempre insuportável a álcool. Não sei como é que se entende que aquele que nos ama, e que também supomos amar, nos olhe com tanto ódio e deixamos, em nome desse amor, que alguém nos faça tanto mal. Claro que a verdade tem dois caminhos, dirás tu. Quanto a mim, sei-o agora, confundi solidão com estar-se só. E, de certa maneira, morri. Morri lentamente. Morri ao longo de dez intermináveis anos. Longos, tão longos. Se calhar, pensas que te culpo. Agora já não. Nem a mim. Agora também já não me culpo a mim. A capacidade de nos perdoarmos é a única forma que temos de nos libertarmos. Assim é. E tu? Já te perdoaste?

Nas palavras do poeta V

Se passares pelo adro
No dia do meu enterro
Diz à terra, te não coma
Os anéis do meu cabelo
Já não digo que viesses
Cobrir de rosas meu rosto
Ou que num choro dissesses
A qualquer do teu desgosto
Nem te lembro que beijasses
Meu corpo delgado e belo
Mas que sempre me guardasses
Os anéis do meu cabelo

António Botto