jctp

já não sei escrever. nunca soube escrever. não para ti, pelo menos.

Sim, seria assim que começarias o teu post, se de facto ainda escrevesses. Apaixonei-me por ti antes de te conhecer, ou melhor, antes de te ver. Conheci-te, ou conheci parte de ti, ou imaginei conhecer parte de ti, através das tuas palavras. E vibrei com elas e chorei quando apagaste tudo e saltei montes de fronteiras... e não, não rasguei a pele nem sangrei dos pulsos.

Onde estás tu agora? Ou melhor, onde está aquele teu "eu" agora? Sabes, nunca fui tão feliz e ainda nem sequer experimentámos 1/4 das posições do Kamasutra, mas tenho saudades dele. E quando me tocas é ele por vezes que me toca também. Oh! Grita, por favor, grita agora! E escreve sangue e esperma e violação na parede e depois Buda, Capitalismo e Platão. E chora, chora também. Vá aparece, cabrão! Coleccionador de borboletas...

Sobre o Amor



Eugénia Melo e Castro e Adriana Calcanhoto
Bem Querer e Futuros Amantes

...

Sabes, amor, e se eu te dissesse que as tuas mãos fazem nascer em mim flores, prados inteiros, montanhas e que o cheiro dos dias não é o mesmo sem ti, nem contigo, vertigem, sensação boa e assustadora de princípio e de fim, agora e sempre o medo e o teu calor a derrubar muros, fronteiras, monstros à solta e tudo isto sem pedires nada, e tudo isto com um sorriso, e tudo isto, amor, porque guardo o teu coração numa caixa, nem sei bem porquê, não sei já porquê - como não lembro o sítio da casa onde a guardei. Perdoa-me, amor, mas contigo aprendi a viver o momento e deixei os grandes detalhes, como as arrumações e outro tipo de logística, para as fadas, os duendes ou para o pó. Se um dia quiseres partir, havemos de encontrá-la; afinal, vivemos só num apartamento.

...

CONVERSAS COM CASCAS DE ÁRVORE. TU,
tira a casca, anda,
tira-me, feito casca, da minha palavra.

É tarde já, mas nós
queremos estar nus e à beira
da navalha.

Paul Celan in A Morte é uma Flor

Absolute beginners

Tiro a camisa e olho-me ao espelho. Que corpo é este? Não sei. Houve tempos em que o meu corpo era só o meu corpo. Hoje é uma mistura de todos os corpos que já tive e, por isso, não o reconheço. Mas afinal, penso, não foi o meu corpo que mudou, sendo certo que o meu corpo mudou. Fui eu que mudei e mudo e mudarei; eu que penso, eu que sinto, eu que acordo a cada dia e reparo que o teu sorriso está diferente, ou que as minhas mãos estão diferentes, ou que a casa já não é a mesma. Sabes, nunca fui tão feliz por saber tão pouco.

Vai à merda!

Naquele dia podia ter-te dito que o nosso amor já não me fazia nem viver nem respirar, mas ao invés preferi o silêncio. Não sei porquê. Há coisas em nós que desconhecemos ou que queremos desconhecer, como se um outro eu, poderoso, comandasse mais do que nós. Deve ser o medo, ou esta educação filha da puta que tivemos, ou as duas coisas. Também nunca te disse - ou disse ?- que nunca gostei de viver nesta casa, nem nesta cidade, e ainda menos nesta vida. Não que não goste de viver. O que não gostei foi de viver na tua loucura, no teu egoísmo, nas tuas desculpas, no teu cheiro sempre insuportável a álcool. Não sei como é que se entende que aquele que nos ama, e que também supomos amar, nos olhe com tanto ódio e deixamos, em nome desse amor, que alguém nos faça tanto mal. Claro que a verdade tem dois caminhos, dirás tu. Quanto a mim, sei-o agora, confundi solidão com estar-se só. E, de certa maneira, morri. Morri lentamente. Morri ao longo de dez intermináveis anos. Longos, tão longos. Se calhar, pensas que te culpo. Agora já não. Nem a mim. Agora também já não me culpo a mim. A capacidade de nos perdoarmos é a única forma que temos de nos libertarmos. Assim é. E tu? Já te perdoaste?

Nas palavras do poeta V

Se passares pelo adro
No dia do meu enterro
Diz à terra, te não coma
Os anéis do meu cabelo
Já não digo que viesses
Cobrir de rosas meu rosto
Ou que num choro dissesses
A qualquer do teu desgosto
Nem te lembro que beijasses
Meu corpo delgado e belo
Mas que sempre me guardasses
Os anéis do meu cabelo

António Botto

Memória

Explica-me,
por favor,
se nunca chegaste a partir,
como é que pudeste regressar?

Nas mãos do pintor VI

Love 1 (Hoang Giap)

...

Stop breathing I'm trying to get some sleep Stop breathing allow me to repeat Keep breathing I guess it would disturb Keep breathing the road is getting long Maybe I will find you in another place Maybe I will find you with somebody else Keep breathing life is hard to play Keep breathing we haven't find the way Stop breathing this game it makes no sense Stop breathing Maybe I will find you in another place Maybe I will find you with somebody else The things that they said us The things that we run off Though we try to move over After all that we saw The stage is clear, the view is soft But it's so cold, warm enough The game is set, and too much players again, And here we are, in front of them again Keep breathing, I'm glad to see you back Keep breathing I thought we would give up Stop breathing their eyes will catch our soul Stop breathing their ears will break our mind Keep breathing and join the carrousel Stop breathing pretend a pantomine Keep breathing today we woke up blue Stop breathing perhaps we lay down dark Keep breathing I'm trying to get some sleep Stop breathing allow me to repeat Keep breathing and join the carrousel Stop breathing And dark, and blue, and again Maybe I will find you in another place Maybe I will find you with somebody else Keep breathing I'm trying to get some sleep Stop breathing allow me to repeat Keep breathing this game it makes no sense Stop breathing Maybe I will find you in another place Maybe I will find you with somebody else

The Gift


Sabes, às vezes dói-me a boca, ou a pele, tanto faz, e as madrugadas tornam-se frias. E mesmo quando as tuas mãos vêm ao meu encontro, a memória do caos e da dor insiste em permanecer, cruel, solitária, a lembrar-me o medo e o desespero das horas vazias. E choro. E se finalmente adormeço no calor dos teus braços, fica-me a sensação de te ter amado tão pouco.

Sentir-me assim...

Give me please five minutes of everything
Those days when you wake up
And there's no one by your side
My arm slides slowly to my left side
And to my right side, there's no one there
To kiss you or to hear you
And you go out of bed
Thinking in those days that you need
You used to talk and talk about
And everything that stops your attention
You used to talk, talk about
Everything
Those days when you walk at the bar
And try to keep a conversation with somebody else
And no one out there you could sit down or walk
There's no one there.
Five minutes of love
Five minutes of hate
Five minutes I try to call your name
Five minutes of passion
And no one knows the right place to go
No meaning or just self-control maybe
And you walk out of there
You need to talk with somebody else
And to know the problems are waiting for
Outside the door
Are waiting for
The clock won't stop
And even if it stops
Five minutes of love
Five minutes of hate
Five minutes I try to call your name
Of passion
Five minutes of everything
Of everything
Maybe you want to talk about old questions
Right next to my ear
But I don't care about those silly things
Cause all I need is five minutes of everything


The Gift

O Tempo II

Tinhas os olhos vítreos e o suor escorria-te pela testa. As pernas estavam secas, do medo. Olhavas-me, como se sofresses. Tinham passado três anos desde que te decidiras a fazer a tua viagem. Para mim, tinha passado um século; e isso tu parecias não compreender. As noites em claro, as lágrimas sufocadas pela almofada, olhar o tecto escuro durante horas à procura de uma explicação para o fim do nosso amor. Regressaste num dia solarengo, com um monte de fotografias, muitas histórias para contar e um sorriso nos lábios. Esperavas o meu abraço, mas ele não veio. Esperavas uma festa, música e flores pela casa, talvez até a minha disponibilidade. Suponho que sempre imaginaste que eu não tinha vida para além de ti ou que eu te iria amar para sempre, mesmo que tu nunca me amasses.Mas nunca é demasiado tempo, mesmo para quem ama, sobretudo para quem fica.
Sempre foste um porco egoísta.


O Tempo

Há o momento em que estás dentro de mim
e o instante em que desejo que estejas dentro de mim
e a fracção de segundo em que estes dois tempos se esbatem.

As chaves II


A explicação de Freud

Certo homem mentiu à mulher. Era uma mentira inocente, é certo. Mas não deixava de ser uma mentira. E por isso perdeu as chaves. Ou não as encontrou, uma vez que elas estiveram sempre debaixo do seu nariz, como se costuma dizer. Só depois de ter confessado à mulher que lhe tinha mentido encontrou as chaves.

Poderá parecer que o problema do homem era encontrar as chaves, mas o problema era ter mentido, e só depois de se libertar do verdadeiro problema, conseguiu resolver com sucesso o problema aparente: a perda das chaves.

Casos como estes existem muitos, e contam-se aos milhares, e mostram como a psicanálise pode ser muito útil.

As chaves I


As chaves desapareceram. Não sei onde estão.
Mas foste tu a última pessoa que esteve com elas. Na outra noite fui eu quem abriu a porta, trazias a criança ao colo, mas ontem saíste para almoçar, não saíste?
Não, não saí. Menti-te para não te preocupar. Ou por egoísmo estúpido que é, provavelmente, o único motivo da mentira.
Que valor tem a verdade se uma mentira passa por sê-la?

A mentira tapa-me os olhos.
As chaves estiveram sempre à vista,
como a carta roubada
no conto de Poe.
A verdade ilumina.
Já a disse.
As chaves já podem aparecer.
Apareceram.

Lentidão II

E se, de repente, o tempo se transformasse numa linha vertical contínua, e o teu olhar, contra o meu olhar, fosse hora-segundo ou segundo-hora, forma inversa do desejo, aqui, ali, o desejo aqui e ali, um riacho a correr, um riacho a correr parado, ou uma parede a abrir brechas, pequenas, uma parede a abrir brechas pequenas, a respiração lenta e pesada, o corpo louco de ti, e de mim, a soma de dois, a divisão de um, tudo o que há e não há, a pequena-grande loucura da felicidade.

E se, de repente, o tempo se transformasse na ausência de si mesmo, e o meu olhar, contra o teu olhar, fosse o teu olhar, contra o meu olhar, forma precisa do desejo, universo, árvore ao vento, seixo redondo, figura geométrica infinita, os corpos opacos, as almas translúcidas, o gesto, a leveza, o contrário do gesto e da leveza, os sinais, as linhas, os caminhos, a beatitude de não ter que os percorrer, a soma de dois, a divisão de um, tudo o que há e não há, o princípio, o fim.


Nas palavras do poeta IV

É por ti que escrevo que não és musa nem deusa
mas a mulher do meu horizonte
na imperfeição e na coincidência do dia-a-dia
Por ti desejo o sossego oval
em que possas identificar-te na limpidez de um centro
em que a felicidade se revele como um jardim branco
onde reconheças a dália da tua identidade azul
É porque amo a cálida formosura do teu torso
a latitude pura da tua fronte
o teu olhar de água iluminada
o teu sorriso solar
é porque sem ti não conheceria o girassol do horizonte
nem a túmida integridade do trigo
que eu procuro as palavras fragrantes de um oásis
para a oferenda do meu sangue inquieto
onde pressinto a vermelha trajectória de um sol
que quer resplandecer em largas planícies
sulcado por um tranquilo rio sumptuoso

António Ramos Rosa

Lentidão I

E se, de repente, o meu coração explodisse e o teu olhar, contra o meu olhar, fosse a razão dessa cor-luz, início e fim, em si mesmos, exacto momento da celebração do nosso amor, cratera, vale, precipício, novamente olhar e cor-luz, finito, infinito, campo desbravado e por desbravar, floresta, cheiro, madrugada sempre adiada, o gesto cego de ver, o milésimo de segundo em que depositas um beijo nas minhas mãos, o desejo aqui, salpicado por nuances carmim, a aridez da pele e dos dias, sorrisos, a maneira precisa com que me segredas o caminho, a beleza serena que me fazes sentir.

E se, de repente, o teu coração explodisse e o meu olhar, contra o teu olhar, fosse a razão dessa luz-cor, início e fim, em si mesmos, exacto momento em que nos encontramos, monte, planalto, encosta plana, novamente olhar e luz-cor, aqui, agora, o princípio e o fim do que vem depois, búzio, flor, vinho tinto a cheirar a ervas, a certeza do acto, o gesto certo de ver, o milésimo de segundo em que deposito um beijo nas tuas pálpebras, o desejo pontilhado de violetas e azuis, a lentidão da pele e dos dias, sorrisos, a maneira indecisa como te sussurro o teu nome, o mistério profundo da tua imensidão e do teu carinho.

...

Na noite em que eu morri e tu me abraçaste havia no ar um som longínquo e no céu um suave luar ou era o vento que brincava com as folhas das árvores, já não sei.
Quando ressuscitei era já dia e tu permanecias a meu lado, olhos abertos, os meus de espanto, um sorriso nos lábios.

Ahhhhhhhhhh!

Hoje vou desconstruir o objecto do meu afecto, quero dizer, matá-lo, acabar com ele, encontrar-lhe defeitos, verrugas, maus cheiros, falhas de carácter, obstipações, palavras mal escritas, olhos cansados, mãos mudas, tiques, incoerências, e tudo mais o que me aprouver.
Hoje vou dizer-lhe que já não o suporto, porque os afectos são racionais, e que estive a pensar, e que afinal aquele seu defeito não me agrada, não me ilude, não me completa, não me desconexa, não me amplifica, não me consubstancia e tudo o mais que me aprouver.



Dizem III

Amor pede Identidade com Diferença

O amor pede identidade com diferença, o que é impossível já na lógica, quanto mais no mundo. O amor quer possuir, quer tornar seu o que tem de ficar fora para ele saber que se torna seu e não é. Amar é entregar-se. Quanto maior a entrega, maior o amor. Mas a entrega total entrega também a consciência do outro. O amor maior é por isso a morte, ou o esquecimento, ou a renúncia - os amores todos que são os absurdiandos do amor.


(...) O amor quer a posse, mas não sabe o que é a posse. Se eu não sou meu, como serei teu, ou tu minha? Se não possuo o meu próprio ser, como possuirei um ser alheio? Se sou já diferente daquele de quem sou idêntico, como serei idêntico daquele de quem sou diferente? O amor é um misticismo que quer praticar-se, uma impossibilidade que só é sonhada como devendo ser realizada.


Fernando Pessoa in O Rio da Posse

...


Vanessa da Mata e Ben Harper

Nas mãos do pintor V

...

No dia em que decidiste cortar os pulsos eu ia de viagem e o céu estava azul.

Quando me despedi e te beijei senti-te estranho; mas há sempre tantas estranhezas entre nós...

Suponho que sempre gostaste de sensações-limite, e da cor vermelha, e de um certo sofrimento a intensificar a relação.

Em tempos, esse teu estar fez-me sentido. Mais tarde provocou-me tristeza. Agora, apenas te acho doente.

Sabes, o amor não é isso, nunca foi isso, nós é que estávamos confundidos.


Sabes?

Sabes?
Baralhas-me.
Se nos teus olhos não vejo os meus olhos.
Se as tuas mãos se tornam de repente oblíquas ao invés de quadradas.
Se o mar, que foi sempre vermelho, é agora azul.
Sabes?
Nem sempre entendo a geometria da nossa relação.
Se eu penso em pássaros e tu me falas de Kant.
Se me reservas sorrisos enigmáticos e poucas palavras.
Se decides, sem eu saber, que a partir de amanhã só comes pastilhas gorila.
Sabes?
Queria rir hoje como sei que vamos rir amanhã, estatelar-me na relva e voar contigo até ao centro da terra, os cabelos ao vento, o medo a gritar-nos aos ouvidos, uma súbita e inesperada estalada de cores.
Sabes?
Não?
Gostava que soubesses.

Humming - Portishead

O meu amor não sabe dar uma rapidinha



Tínhamos os dois pressa naquela manhã. Eu já tinha tomado banho e estava vestida, quando entrei no quarto para ir buscar qualquer coisa, não me lembro o quê. Tu estavas a vestir-te. Não sei porque nos olhámos nos olhos, nem porque tudo ficou subitamente quente e doce. A brincar, disse-te: se quiseres, damos uma rapidinha. Tu sorriste. Na cena a seguir, não sei com que velocidade, estávamos os dois despidos, pernas, mãos, braços e bocas numa confusão. Rimos e eu disse: bom, sempre contribuímos para a manutenção do tempo médio das quecas portuguesas! Meia hora depois a campainha tocou, mas nós ainda não tínhamos sequer começado.

Nas palavras do Poeta III

Porque escondes a noite no teu ventre?
Nesse país de sombra onde se calam as palavras.
Aí, no escuro lago onde estremece a flor da amendoeira
E onde vão morrer todos os cisnes.

Eu desvendo a tua dor, o teu mistério
De caminhares assim calada e triste,
Quando viajo em ti com as mãos nuas e o coração louco
No mais fundo de ti, onde só tu existes.

Oh, eu percorro as tuas coxas devagar
Dobrando-as lentamente contra o peito
E penetro em delírio a tua noite
Esporeando éguas no teu sangue.

De onde me chegam estas palavras?

Joaquim Pessoa

Nas mãos do pintor IV

(Slawek Gruca)

Memória de um Filho da Puta

Gostava mais quando me batias e ainda tinhas coragem para olhar para mim. Olhos fixos, chispas, ódio. Por esses tempos julgo que ainda me sentia viva, apesar de tudo. Se me vias... procurei acreditar que não. Com o tempo também eu deixei de te ver e entreguei a minha alma ao caos, certa de que em breve a morte me libertaria. Esteve calor nesse Verão. Lembro-me de olhar as coisas como se tudo me fosse exterior, espécie de miragem que nem quis compreender. E do frio absurdo que me invadiu e que ainda hoje, por vezes, me visita.
Tenho uma nova casa agora, bem diferente daquela que um dia tivemos. E perdoou-te tudo, excepto a tua memória no meu presente que, embora raramente, teima em me lembrar.

De roxo a azul

No dia em que deixaste de me amar soube-o logo porque os teus olhos passaram instantaneamente de roxos a azuis, e o teu sorriso tornou-se um tronco seco, e a noite caiu como um pesado véu de veludo preto sobre a minha vida.

E as doninhas, meu amor, nunca mais voltaram a visitar o nosso quintal.

Casamento

O fim do Amor.

Agora

Quando é que me apetece fazer amor contigo, ou melhor, porque é que me apetece fazer amor contigo? Que pergunta tonta, dirás, como esta minha ânsia de tudo explicar, mesmo o que não é explicável.

Tenho andado a guardar todos os rascunhos daquilo que já escrevemos, mesmo o que então – ou agora – não nos faz qualquer sentido.
Guardo tudo numa caixa de sapatos velha, que forrei com papel de cor e flores secas do nosso quintal.

Ontem, quando fui ao supermercado, uma senhora já velha olhou-me a abordou-me de uma forma bizarra. A menina está muito apaixonada, não é verdade, perguntou-me ela.
Sem saber o que dizer ou pensar corei e sorri-lhe um sim sussurrado.
Passei o resto da tarde a pensar na minha sorte.

Quando tenho frio procuro invariavelmente o teu abraço, como se nenhum outro corpo pudesse mitigar este meu não sei bem o quê, que se parece com doença ou desespero ou com outra forma de te ter também.

Agora dou por mim a acreditar que nunca fui tão feliz e a inventar para nós todos os destinos possíveis.

Um dia rir-me-ei disto, tenho a certeza. Ou então chorarei.

Labirinto

O homem tinha as mãos cravejadas de flores e os pulsos em chama e ouvia o som labiríntico do seu sangue a viver.

Eternidade

Nunca soube quando chegaste, provavelmente porque estiveste sempre aqui.

Nas mãos do pintor III

Abraço de Corpo (Walfran Guedes)

Primavera

Tinhas o corpo alto e duro, lembrando uma árvore. Tinhas as costas largas e o peito farto, lembrando uma montanha, ao fundo uma floresta. Tinhas as mãos grandes, enormes, mas tocavas leve, incendiando, trazendo paz, às vezes as duas. Tinhas o rosto claro, como os olhos, por vezes escuros, e balançavas entre ti e mim, como eu, perdida e encontrada neste nosso amor. Por vezes ríamos, e a tua boca era então o meu altar, como o teu sexo, ou uma frase tua. E dormir, amor, sabes, nunca foi tão bom – como acordar de manhã e começar logo a sorrir. Tinhas tudo e não tinhas nada. Julgo que foi por isso que comecei a acreditar em Deus.

Humor

Ontem fizemos amor. Rimos apenas. Muito.

Às vezes sim, às vezes não.

Acreditava no amor e não acreditava. Às vezes sim. Às vezes não. É como tudo. Não há grande diferença. É como acordar a sorrir porque se sonhou com o paraíso. Ou acordar a chorar porque se viu o inferno. A vida é mesmo assim. É normal que sim e é normal que não. Nunca se sabe ao certo. Aquilo que se procura nem sempre se encontra. E aquilo que se encontra nem sempre é o que se procura. E às vezes sim e nem vemos. E às vezes não e nem percebemos. Ora parece que sim, ora parece que não. Há um sorriso doce e uma lágrima amarga, e um sorriso triste e uma lágrima de alegria. E o contrário do que é nem sempre é o oposto do que não é. Palmilhamos e tacteamos e tentamos adivinhar. Mas o enigma começa depois de o termos resolvido. Caixa chinesa de emoções indecifráveis. Ninguém tem o mapa dos caminhos por fazer. O futuro é o presente à procura de si próprio e o passado são os passos que damos para lá chegar. Mas não se aprende a lição que outros nos podem ensinar. Não se encontra sem perder nem se perde sem encontrar. Acreditava no amor e também não acreditava.

1001

Há mil e uma maneiras de fazer amor. E tantas por inventar.

Não me guardei para ti

Não me guardei para ti e não me arrependo. Porque eu não sabia que te ia encontrar. Nunca acreditamos em milagres. Mesmo quando imaginamos que sim. Corremos sempre ainda que acreditemos na Virgem. E talvez nem a Virgem o fosse. Chamava-se Maria e teve um filho. Talvez tenha tido mais. Um dia disse a José que ia ter um filho de Deus. E José disse que sim. Que o filho que teriam de Deus seria. Que todos o somos. Ou talvez Maria tenha dito: "Tenho Deus dentro de mim." E José confirmou. "Tenho-o dentro de mim também", terá acrescentado. À sua imagem e semelhança fomos criados. E se damos pela diferença é só porque estamos sós, e não sabemos, e temos medo. Ele não. Ele sabe e não tem medo. Embora seja possível que também se sinta só. Mas não foi pela Virgem que eu esperei, nem te amaria mais se o fosses.

Aqui e agora

Qualquer coisa era um segredo por descobrir, como as tuas mãos. Um calor sempre novo, intenso, suave. Ou a tua boca, leve, sedenta. Perder-me em ti, em nós, saltar o ângulo exacto do frio que é a madrugada e repousar no nosso ovo, espaço inteiro, completo, o lugar aqui e agora.

Nas mãos do pintor II

A Deux (Ragnit von Mosch)

I know not

Costumava responder "não sei", às perguntas sobre o futuro. A questão não estava tanto no conteúdo da pergunta quanto na sua projecção no tempo.

E diz

A mulher tinha luz nos olhos. Ou se não era luz era qualquer coisa parecida. Dançava com as estrelas e fazia amor de madrugada. Contava histórias improváveis de vidas passadas. Tinha sido sereia num mar de encantos. As mãos tocavam por dentro da carne. O sangue inundava-nos de esperança desamparada. Havia uma fuga incerta na doçura dos seus beijos. Uma promessa suave de paraíso perdido. Foi lá que nos conhecemos antes de nos encontrarmos. Os corpos escondem a alma que os dedos desnudam. Lentamente. Na estranha dimensão do encanto. Há um abrigo onde aprendemos a ressuscitar. As palavras não alcançam mas o silêncio sabe. E diz.

Queria escrever

uma história de amor. Uma história qualquer. Que tivesse o encanto dos teus olhos. A luminosidade dos teus sonhos. Queria conhecer as palavras certas. Inventar um código qualquer onde nos reconhecessemos. Queria uma luz qualquer que me iluminasse os passos. Há crianças perdidas que esperam pela nossa voz. Somos já nelas o que nunca mais seremos. Se eu fosse poeta dava a volta ao texto. Deixaria de procurar o fim da linha. E os meus versos haveriam de conter as tuas mãos. As minhas palavras confundir-se-iam com as tuas. E o sorriso seria já quase um abraço.

Deste lado do espelho

Deste lado do espelho pouca coisa há. Mas alguma coisa se há-de arranjar, por pouco que seja. Um sorriso, um afago, uma luz qualquer, talvez difusa. Deste lado do espelho as flores dançam e o mar agita-se, levemente. Deste lado do espelho há um abrigo, um caminho novo por trilhar, uma vida inteira para inventar. Deste lado do espelho há uma verdade que não magoa, antes ilumina, como a mão traquila que conduz uma criança ao outro lado da vida. Deste lado do espelho há a bonomia dos dias perdidos e a nostalgia das noites por haver. Há um espanto original ante a diversidade das coisas e do que nelas e por elas se pensa, se vive, se sente, se imagina, apenas. Deste lado do espelho há uma travessia renovada, um corpo agitado à procura do silêncio primordial que apazigua o seu inexorável desassossego. Deste lado do espelho há uma espiral de cores e de sons, de palavras e de traços incertos, artisticamente redimidos na firmeza do instante. Deste lado do espelho fica aquilo que tu procuras, mas não sabes definir. O palpitar doce e suave do coração, a claridade licorosa dos olhos e a abertura amigável que o sorriso rasga, renova e oferece. Deste lado do espelho há crianças que brincam nos jardins da imaginação, mulheres que aprenderam a doar e homens que se arrependem da irracionalidade intempestiva dos seus medos. Deste lado do espelho há uma brisa que te acaricia a face como um beijo improvável numa noite fria. Uma lua que se derrama num céu de estrelas e a paleta ainda intacta do pintor desconhecido. Deste lado do espelho há um sonho ancestral que ficou por cumprir. Uma mão aberta à ternura que passa e se demora e aprende a ficar. Deste lado do espelho está aquilo que somos e nos ajudaram a esquecer em falsos trejeitos de memória. Deste lado do espelho há fragilidades de infância que desabrocham em peitos desencantados. Deste lado do espelho há um caminho, um sonho, uma vida. E a certeza do tempo reencontrado.

Tu

Na beira dos teus lábios escrevo os meus, pétalas, rosas, metal fundente, hiato de tempo por cumprir e encontrar.

No ciclo dos teus olhos recordo os meus, chamas, ventos, oásis perpétuos, doçura rasgada e por rasgar.

Na ânsia das tuas mãos invento as minhas, conchas, relâmpagos, o mundo ao contrário, uma lágrima por sorrir outra por chorar.

No grito do teu amor encontro o meu, serra, nuvem, céu, ao longe o mar, corpo, alma, sopro… doce respirar.

Dizem II

Nunca nos questionamos sobre o significado da vida quando estamos apaixononados.

BHAGWAN SHREE RAJNEESH

Amar sem saber a quem

No dia em que partiste, soube, como nunca, que o nosso amor foi tão só a tela que pintei e que nunca chegámos a pendurar.
Quando mais tarde a procurei pela casa, encontrei-a branca, vazia de traços e de cores, como que a lembrar-me a falta de pregos e de martelo que sempre se fez sentir.
Sinto-me aliviada.

Nas palavras do poeta II

Enquanto
um calor mole nos tira a roupa
e mesmo nus sobre a cama
os corpos continuam a pedir água
em vez doutro corpo,
penso no tempo em que o suor
e a saliva e o odor e o esperma
faziam dessa agonia
a alegria
a que chamávamos amor.

Eugénio de Andrade

Tocar o Eterno

Tendemos a imaginar o amor como algo que existe independentemente de nós. Como algo que nos acontece de fora para dentro e não de dentro para fora. Mas só o amor que temos dentro de nós se pode exteriorizar e só aquilo que já temos podemos encontrar. Amar não é tanto desejar ser amado – o que pode conduzir, se é que não conduz sempre, a uma forma perversa de amor – quanto desejar amar. Só podemos receber aquilo que temos e só temos o que damos. A solidão não é apenas efeito do desamor, é também condição do amor. Só o amor que alimentamos dentro de nós, a sós connosco próprios, se pode exteriorizar e tocar o outro. Cupido existe fora de nós, ou assim o imaginamos, mas como todos os deuses Cupido não tem existência real fora do espaço simbólico dentro do qual adquire significado. Todos estamos expostos às suas setas do amor, mas depende de nós prolongar o efeito da sua droga. Os templos que construímos fora de nós e onde objectivamos o nosso coração são apenas pó e coisa nenhuma que o tempo reduzirá a nada. Mas o templo que construímos no coração, tem a dimensão do nosso ser e do nosso amor, e mesmo que acabe onde nós acabamos, a luz que dele irradia é provavelmente a nossa única oportunidade de tocar o Eterno.

O primeiro dia do resto da tua vida

Nascer de novo. Todos precisamos nascer de novo. Todos os dias. Constantemente. Dormir é como morrer. Acordar é como nascer. O amor talvez nem outra coisa seja. Por isso precisamos dele, por isso o procuramos. O desejo de nascer de novo. Se não nascerdes de novo de forma nenhuma entrareis no Reino, disse Jesus ao sábio Nicodemos, e talvez Jesus quisesse dizer que sem nascer de novo não saímos do Inferno. Pior ainda, nem nos apercebemos que estamos no Inferno, e embriagados por essa ignorância tornamo-nos o nosso próprio inferno. Necessário nos é nascer de novo. Nem para outra coisa fazemos amor, senão para morrer, senão para nascer. Viver e morrer são a mesma coisa quando se nasce, quando se sabe, quando se ganha mesmo que se perca, quando se ama. Hoje é o primeiro dia. Este é o primeiro beijo. Esta é a primeira vez.

Ela

O peso do homem era brutal. Mas Ela não se importou. Já estava habituada. Um animal de hábitos. Tinha dito Aristóteles. Ou talvez não tenha sido Aristóteles. Ela não tinha grandes conhecimentos sobre essas coisas. Se foi Aristóteles deve tê-lo dito do Homem, não da Mulher, que essa sempre pouco contou. Anthropos. Parece que era assim que se dizia em grego. Um dia ainda haveria de perguntar ao Doutor, que era cliente habitual. Daqueles que falavam. Ao contrário deste. Que ia direito ao assunto. Aprendia-se sempre alguma coisa com o Doutor. Até Ela aprendia. O Doutor nunca menosprezou a sua inteligência. Por vezes o Doutor nem tocava no assunto. Pagava e gastava o tempo comprado a falar com Ela. Mas este vinha só pelo assunto. Não tinha tempo a perder. Nem a ganhar. Não se despia. Abria a braguilha e entrava n'Ela. O Doutor nunca o fazia à bruta. Ela por vezes pensava no Doutor quando estava com outros clientes. Nunca pensava no marido que também nunca falava com Ela. Trazia-a e vinha-a buscar. Tratava da contabilidade do negócio. A violência ocasional era a única forma de comunicação que conheciam. Ela vingava-se no Doutor. Por vezes chorava. O Doutor limpava-lhe as lágrimas e falava-lhe de heroínas que tinham dado a volta ao texto. Que tinham reinventado a sua história. Que tinham aberto caminho nas trevas. Aquelas histórias alimentavam-na.Por vezes quando o marido a vinha buscar, Ela sorria. Aquele sorriso irritava o contabilista. Homem de poucas palavras e de menos sorrisos. A alegria d'Ela era mau sinal. Isto é um trabalho. Logo um sacrifício e uma tortura. Não era suposto Ela gostar. Quando o marido se vinha para dentro d'Ela, Ela sentia-se mais vazia do que nunca. Pensava no Doutor e em como seria bom fugir com Ele. Se o amor fosse possível entre uma mulher como Ela e um homem como Ele.

o sentido de não haver um sentido

Adivinha em que é que estou a pensar, pediu-me ele, palavras estranhas na sua boca, olhos rasgados de tanto olhar.
Em gelados, respondi, talvez pelo quente da tarde, um pouco para zombar.
Subitamente zangado, levantou-se e deixou um lugar enorme na cama.
Fitei-o enquanto se vestia e vi-o, mais tarde, a passear na praia pela janela do quarto.
Peguei no livro que obcecada andava a ler e achei-o aborrecido.

Dizem I


Não há uma coisa que se faça por um ser (que se faça verdadeiramente) que não negue um outro. E quando não nos podemos resignar a negar os seres, há uma lei que nos estiriliza para sempre. De certo modo, amar um ser é matar todos os outros.

Albert Camus

Escola de (des)amor

Ensinaram-nos a amar não tanto quem amamos ou quem nos ama, mas quem devemos amar e nos deve amar. Ensinaram-nos que o amor era uma predisposição natural, que já lá estava antes que nós pudéssemos decidir ou escolher. Ensinaram-nos que nada podíamos, não contra o seu poder, apenas loucura passageira, mas contra o argumento natural da sua presença. O amor já estava antes que soubéssemos amar. A estrutura estava montada e as variáveis definidas e limitadas. Cúpido tinha as suas setas e a sua sabedoria, mas o seu carácter aleatório era visto com medo e com pudor. Era impossível amar quem não estava dentro dos limites do amor ou não amar quem lá estava. Ensinaram-nos que o amor era um hábito que tínhamos de aceitar e a que tínhamos de nos adaptar. Amava-se por obrigação, ou por procuração, raramente por vocação. Éramos escravos de um amor que evitava o amor, que nos protegia do amor. De um amor que matava o amor. As expressões efusivas de carinho e ternura eram reduzidas ao máximo. Não era preciso provar a existência de um amor que não poderia não existir. Tudo estava previsto. Evitavam-se desvios. Encurtavam-se caminhos. Fechavam-se labirintos. Sabíamos quem devíamos amar e quem nos devia amar. Não sabíamos quem amávamos nem quem nos amava. E essa ignorância era a única justificação desse amor.

Noite

De repente apeteceu-lhe acender um cigarro. Fê-lo sem pensar e ficou a olhar para o tecto perdida em pensamentos. O calor e o cheiro do corpo de Ricardo trouxeram-na de volta ao quarto e à memória dos beijos recentes. O que tinha mudado desde a última vez? Quanto tempo tinha passado desde a última vez? Pouco, seguramente, não mais do que dois ou três dias, dias calmos, dias aprazíveis, dias cheios de risos e de encantamentos. Cristina apetecia-lhe chorar. Ricardo sorria-lhe agora, aparentemente feliz, o que a fazia sentir-se ainda mais confusa e miserável. O que tinha mudado, voltou a questionar-se, certa, no entanto, de que não encontraria resposta para a pergunta tantas vezes formulada. Amava Ricardo, como ele a amava a ela. Não obstante, isso nem sempre parecia bastar a Cristina. E o que usualmente tinha o cheiro, a forma e a textura de milagre dentro do seu coração, tinha hoje, como em outros momentos, o sabor amargo de um vazio quase próximo do deserto que é a solidão. O cigarro chegava ao fim, bem como a vontade de pensar de Cristina que, depois de sorrir a Ricardo, se aninhou nos seus braços certa de que o sono, esse seu amigo, chegaria breve, breve.

Circunvalação

Circunvalação
estrada da circunvalação
ando às voltas que nem um pião
nas circunvizinhanças do teu coração
(Sérgio Godinho)

Não sabemos o que seja o amor. Por isso falamos sobre ele. Por isso temos medo dele. Por isso o procuramos e o evitamos, com a mesma ânsia e o mesmo receio. Não sabemos o que seja o amor. Sabemos o que são coisas simples. Ou imaginamos saber. Coisas de que não falamos, coisas que não problematizamos. Coisas que estão apenas aí. Que são aquilo que são e nada mais do que isso. Sabemos o que é uma pedra. Reconhecemos uma quando a vimos. Uma pedra é só uma pedra. Nada mais. Agora imaginemos que toda a gente começava a discutir sobre pedras, que se escrevia tratados sobre pedras, que se daria conferências sobre pedras, que se organizava debates sobre pedras. Deixaríamos de saber o que é uma pedra. Não porque passássemos a saber menos sobre as pedras, mas precisamente porque saberíamos mais. O amor está sempre presente nas nossas vidas. Não nos conseguimos ver livres dele. Somos, no Ocidente, filhas e filhos de uma religião que ensinou que Deus era amor, no seu desejo, talvez ingénuo, talvez perverso, de tornar o amor Deus. As pedras, ao que parece, mas falamos pouco sobre elas, não amam, o que não impediu um escritor português, sobejamente conhecido, de dizer num título de um livro seu que haveria de amar uma pedra. Se esse poderia ou não vir a ser um amor correspondido é coisa que desconhecemos. Teríamos que falar mais sobre pedras para saber se uma pedra pode amar, ou ao menos para deixarmos de saber que uma pedra não pode amar. De amor falamos muito. É uma das palavras mais usadas e abusadas. Pervertidas também. As pessoas que não acreditam em realidades transcendentes não deviam interrogar-se sobre a sua existência. Basta pensar no amor, para que tudo o resto, desde o país das maravilhas até ao reino dos céus, se torne coisas comuns. Coisas tão comuns como pedras. A pedra está ali, existe antes de nós, partindo do pressuposto que existe, e depois de nós continuará a existir. Talvez por isso as pedras não precisem de amar, Não precisam de ter nenhuma ilusão de vida eterna. Mesmo morrendo, que ao que parece nada fica sendo sempre aquilo que num determinado momento é, não precisam de amar, pois até prova em contrário, mas sabemos pouco sobre pedras, nenhuma pedra sabe que vai morrer. Os animais, ao que parece, também não, ainda que os cisnes cantem antes do momento final, quando parecem estar sabendo que a sua hora chegou, cantam e algum poeta mais amante dos animais poderia ver nesse canto o nascimento do amor. Os seres humanos, esses, sabem que vão morrer. Sabem-no desde muito cedo. E por isso precisam do amor. Para que a vida, que é penosa e breve, tenha um sentido qualquer que a ultrapasse. Somos os fugitivos da morte. Viver talvez nem seja outra coisa. O amor é só um abrigo que procuramos para não ter que continuar a fugir. E por isso, no fundo, queremos um amor eterno, queremos um amor que dure sempre, mesmo que seja apenas eterno enquanto dure, absurdo que parece possível no reino do amor, mesmo que o não seja. Queremos amar uma pedra, porque a pedra estará sempre ali enquanto o nosso amor durar. Amar uma pessoa é outra coisa e mais difícil ao que parece. Amar é desejar ser amado, já foi dito. Mas desejar ser amado não parece ser verdadeiramente amar. Seria talvez mais eficaz amar o amor. E ser esse amor no nosso amor. Todo o amor é imitação de um amor maior. Não amaríamos se o amor não nos antecedesse. Se o amor não estivesse já presente antes do nosso amor. A existência do amor é condição prévia à expressão do nosso amor. Por isso dizemos que o amor não se explica. Porque só o amor poderia explicar o amor.

a primeira vez

Tira o chapéu, pediu-me ele.
Olhei-o atrapalhada; pareceu não notar.

Tira o chapéu, voltou a pedir, suavemente.
Não sei porque não entendeu que os meus olhos se perdiam nos seus à espera de um qualquer sinal.

Lentamente, contudo, tirei o chapéu e sorri-lhe, lembrada do seu corpo, do seu cheiro, da sua boca, quando fazíamos amor.

Agora, tira a camisola, disse, e ficou a olhar-me como se, de repente, tivesse compreendido o meu embaraço e esse facto o enchesse de prazer.
Dentro de mim alguma coisa explodiu e o meu coração desatou aos pulos. Conhecia aquele homem, pensei, conhecia-o de cor. Apesar disso, senti como se aquela fosse a primeira vez.

Nas mãos do pintor I

Kiss (Nikolay Antonov)

Nas palavras do poeta I

Eu cantaria mesmo que tu não existisses,
faria amor, assim, com as palavras.
Eu cantaria mesmo que tu não existisses
porque haveria de doer-me a tua ausência.

Por isso canto. Alegre ou triste, canto.
Como se, cantando, tocasse a tua boca,
ainda antes da tua presença.
Direi mesmo, depois da tua morte.

Eu cantaria mesmo que tu não existisses,
ó minha amiga, doce companheira.
Eu festejo o teu corpo como um rio,
onde, exausto, chegarei ao mar.

Sim, eu cantaria mesmo que tu não existisses,
porque nada eu direi sem o teu nome.
Porque nada existe além da tua vida,
da tua pele macia, dos teus olhos magoados.

Assim quero cantar-te, meu amor,
para além da morte, para além de tudo.

Joaquim Pessoa

Derrida, le qui et le quoi.