As chaves II


A explicação de Freud

Certo homem mentiu à mulher. Era uma mentira inocente, é certo. Mas não deixava de ser uma mentira. E por isso perdeu as chaves. Ou não as encontrou, uma vez que elas estiveram sempre debaixo do seu nariz, como se costuma dizer. Só depois de ter confessado à mulher que lhe tinha mentido encontrou as chaves.

Poderá parecer que o problema do homem era encontrar as chaves, mas o problema era ter mentido, e só depois de se libertar do verdadeiro problema, conseguiu resolver com sucesso o problema aparente: a perda das chaves.

Casos como estes existem muitos, e contam-se aos milhares, e mostram como a psicanálise pode ser muito útil.

As chaves I


As chaves desapareceram. Não sei onde estão.
Mas foste tu a última pessoa que esteve com elas. Na outra noite fui eu quem abriu a porta, trazias a criança ao colo, mas ontem saíste para almoçar, não saíste?
Não, não saí. Menti-te para não te preocupar. Ou por egoísmo estúpido que é, provavelmente, o único motivo da mentira.
Que valor tem a verdade se uma mentira passa por sê-la?

A mentira tapa-me os olhos.
As chaves estiveram sempre à vista,
como a carta roubada
no conto de Poe.
A verdade ilumina.
Já a disse.
As chaves já podem aparecer.
Apareceram.

Lentidão II

E se, de repente, o tempo se transformasse numa linha vertical contínua, e o teu olhar, contra o meu olhar, fosse hora-segundo ou segundo-hora, forma inversa do desejo, aqui, ali, o desejo aqui e ali, um riacho a correr, um riacho a correr parado, ou uma parede a abrir brechas, pequenas, uma parede a abrir brechas pequenas, a respiração lenta e pesada, o corpo louco de ti, e de mim, a soma de dois, a divisão de um, tudo o que há e não há, a pequena-grande loucura da felicidade.

E se, de repente, o tempo se transformasse na ausência de si mesmo, e o meu olhar, contra o teu olhar, fosse o teu olhar, contra o meu olhar, forma precisa do desejo, universo, árvore ao vento, seixo redondo, figura geométrica infinita, os corpos opacos, as almas translúcidas, o gesto, a leveza, o contrário do gesto e da leveza, os sinais, as linhas, os caminhos, a beatitude de não ter que os percorrer, a soma de dois, a divisão de um, tudo o que há e não há, o princípio, o fim.


Nas palavras do poeta IV

É por ti que escrevo que não és musa nem deusa
mas a mulher do meu horizonte
na imperfeição e na coincidência do dia-a-dia
Por ti desejo o sossego oval
em que possas identificar-te na limpidez de um centro
em que a felicidade se revele como um jardim branco
onde reconheças a dália da tua identidade azul
É porque amo a cálida formosura do teu torso
a latitude pura da tua fronte
o teu olhar de água iluminada
o teu sorriso solar
é porque sem ti não conheceria o girassol do horizonte
nem a túmida integridade do trigo
que eu procuro as palavras fragrantes de um oásis
para a oferenda do meu sangue inquieto
onde pressinto a vermelha trajectória de um sol
que quer resplandecer em largas planícies
sulcado por um tranquilo rio sumptuoso

António Ramos Rosa