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Na noite em que eu morri e tu me abraçaste havia no ar um som longínquo e no céu um suave luar ou era o vento que brincava com as folhas das árvores, já não sei.
Quando ressuscitei era já dia e tu permanecias a meu lado, olhos abertos, os meus de espanto, um sorriso nos lábios.

Ahhhhhhhhhh!

Hoje vou desconstruir o objecto do meu afecto, quero dizer, matá-lo, acabar com ele, encontrar-lhe defeitos, verrugas, maus cheiros, falhas de carácter, obstipações, palavras mal escritas, olhos cansados, mãos mudas, tiques, incoerências, e tudo mais o que me aprouver.
Hoje vou dizer-lhe que já não o suporto, porque os afectos são racionais, e que estive a pensar, e que afinal aquele seu defeito não me agrada, não me ilude, não me completa, não me desconexa, não me amplifica, não me consubstancia e tudo o mais que me aprouver.



Dizem III

Amor pede Identidade com Diferença

O amor pede identidade com diferença, o que é impossível já na lógica, quanto mais no mundo. O amor quer possuir, quer tornar seu o que tem de ficar fora para ele saber que se torna seu e não é. Amar é entregar-se. Quanto maior a entrega, maior o amor. Mas a entrega total entrega também a consciência do outro. O amor maior é por isso a morte, ou o esquecimento, ou a renúncia - os amores todos que são os absurdiandos do amor.


(...) O amor quer a posse, mas não sabe o que é a posse. Se eu não sou meu, como serei teu, ou tu minha? Se não possuo o meu próprio ser, como possuirei um ser alheio? Se sou já diferente daquele de quem sou idêntico, como serei idêntico daquele de quem sou diferente? O amor é um misticismo que quer praticar-se, uma impossibilidade que só é sonhada como devendo ser realizada.


Fernando Pessoa in O Rio da Posse

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Vanessa da Mata e Ben Harper

Nas mãos do pintor V