Ela

O peso do homem era brutal. Mas Ela não se importou. Já estava habituada. Um animal de hábitos. Tinha dito Aristóteles. Ou talvez não tenha sido Aristóteles. Ela não tinha grandes conhecimentos sobre essas coisas. Se foi Aristóteles deve tê-lo dito do Homem, não da Mulher, que essa sempre pouco contou. Anthropos. Parece que era assim que se dizia em grego. Um dia ainda haveria de perguntar ao Doutor, que era cliente habitual. Daqueles que falavam. Ao contrário deste. Que ia direito ao assunto. Aprendia-se sempre alguma coisa com o Doutor. Até Ela aprendia. O Doutor nunca menosprezou a sua inteligência. Por vezes o Doutor nem tocava no assunto. Pagava e gastava o tempo comprado a falar com Ela. Mas este vinha só pelo assunto. Não tinha tempo a perder. Nem a ganhar. Não se despia. Abria a braguilha e entrava n'Ela. O Doutor nunca o fazia à bruta. Ela por vezes pensava no Doutor quando estava com outros clientes. Nunca pensava no marido que também nunca falava com Ela. Trazia-a e vinha-a buscar. Tratava da contabilidade do negócio. A violência ocasional era a única forma de comunicação que conheciam. Ela vingava-se no Doutor. Por vezes chorava. O Doutor limpava-lhe as lágrimas e falava-lhe de heroínas que tinham dado a volta ao texto. Que tinham reinventado a sua história. Que tinham aberto caminho nas trevas. Aquelas histórias alimentavam-na.Por vezes quando o marido a vinha buscar, Ela sorria. Aquele sorriso irritava o contabilista. Homem de poucas palavras e de menos sorrisos. A alegria d'Ela era mau sinal. Isto é um trabalho. Logo um sacrifício e uma tortura. Não era suposto Ela gostar. Quando o marido se vinha para dentro d'Ela, Ela sentia-se mais vazia do que nunca. Pensava no Doutor e em como seria bom fugir com Ele. Se o amor fosse possível entre uma mulher como Ela e um homem como Ele.

o sentido de não haver um sentido

Adivinha em que é que estou a pensar, pediu-me ele, palavras estranhas na sua boca, olhos rasgados de tanto olhar.
Em gelados, respondi, talvez pelo quente da tarde, um pouco para zombar.
Subitamente zangado, levantou-se e deixou um lugar enorme na cama.
Fitei-o enquanto se vestia e vi-o, mais tarde, a passear na praia pela janela do quarto.
Peguei no livro que obcecada andava a ler e achei-o aborrecido.

Dizem I


Não há uma coisa que se faça por um ser (que se faça verdadeiramente) que não negue um outro. E quando não nos podemos resignar a negar os seres, há uma lei que nos estiriliza para sempre. De certo modo, amar um ser é matar todos os outros.

Albert Camus

Escola de (des)amor

Ensinaram-nos a amar não tanto quem amamos ou quem nos ama, mas quem devemos amar e nos deve amar. Ensinaram-nos que o amor era uma predisposição natural, que já lá estava antes que nós pudéssemos decidir ou escolher. Ensinaram-nos que nada podíamos, não contra o seu poder, apenas loucura passageira, mas contra o argumento natural da sua presença. O amor já estava antes que soubéssemos amar. A estrutura estava montada e as variáveis definidas e limitadas. Cúpido tinha as suas setas e a sua sabedoria, mas o seu carácter aleatório era visto com medo e com pudor. Era impossível amar quem não estava dentro dos limites do amor ou não amar quem lá estava. Ensinaram-nos que o amor era um hábito que tínhamos de aceitar e a que tínhamos de nos adaptar. Amava-se por obrigação, ou por procuração, raramente por vocação. Éramos escravos de um amor que evitava o amor, que nos protegia do amor. De um amor que matava o amor. As expressões efusivas de carinho e ternura eram reduzidas ao máximo. Não era preciso provar a existência de um amor que não poderia não existir. Tudo estava previsto. Evitavam-se desvios. Encurtavam-se caminhos. Fechavam-se labirintos. Sabíamos quem devíamos amar e quem nos devia amar. Não sabíamos quem amávamos nem quem nos amava. E essa ignorância era a única justificação desse amor.

Noite

De repente apeteceu-lhe acender um cigarro. Fê-lo sem pensar e ficou a olhar para o tecto perdida em pensamentos. O calor e o cheiro do corpo de Ricardo trouxeram-na de volta ao quarto e à memória dos beijos recentes. O que tinha mudado desde a última vez? Quanto tempo tinha passado desde a última vez? Pouco, seguramente, não mais do que dois ou três dias, dias calmos, dias aprazíveis, dias cheios de risos e de encantamentos. Cristina apetecia-lhe chorar. Ricardo sorria-lhe agora, aparentemente feliz, o que a fazia sentir-se ainda mais confusa e miserável. O que tinha mudado, voltou a questionar-se, certa, no entanto, de que não encontraria resposta para a pergunta tantas vezes formulada. Amava Ricardo, como ele a amava a ela. Não obstante, isso nem sempre parecia bastar a Cristina. E o que usualmente tinha o cheiro, a forma e a textura de milagre dentro do seu coração, tinha hoje, como em outros momentos, o sabor amargo de um vazio quase próximo do deserto que é a solidão. O cigarro chegava ao fim, bem como a vontade de pensar de Cristina que, depois de sorrir a Ricardo, se aninhou nos seus braços certa de que o sono, esse seu amigo, chegaria breve, breve.

Circunvalação

Circunvalação
estrada da circunvalação
ando às voltas que nem um pião
nas circunvizinhanças do teu coração
(Sérgio Godinho)

Não sabemos o que seja o amor. Por isso falamos sobre ele. Por isso temos medo dele. Por isso o procuramos e o evitamos, com a mesma ânsia e o mesmo receio. Não sabemos o que seja o amor. Sabemos o que são coisas simples. Ou imaginamos saber. Coisas de que não falamos, coisas que não problematizamos. Coisas que estão apenas aí. Que são aquilo que são e nada mais do que isso. Sabemos o que é uma pedra. Reconhecemos uma quando a vimos. Uma pedra é só uma pedra. Nada mais. Agora imaginemos que toda a gente começava a discutir sobre pedras, que se escrevia tratados sobre pedras, que se daria conferências sobre pedras, que se organizava debates sobre pedras. Deixaríamos de saber o que é uma pedra. Não porque passássemos a saber menos sobre as pedras, mas precisamente porque saberíamos mais. O amor está sempre presente nas nossas vidas. Não nos conseguimos ver livres dele. Somos, no Ocidente, filhas e filhos de uma religião que ensinou que Deus era amor, no seu desejo, talvez ingénuo, talvez perverso, de tornar o amor Deus. As pedras, ao que parece, mas falamos pouco sobre elas, não amam, o que não impediu um escritor português, sobejamente conhecido, de dizer num título de um livro seu que haveria de amar uma pedra. Se esse poderia ou não vir a ser um amor correspondido é coisa que desconhecemos. Teríamos que falar mais sobre pedras para saber se uma pedra pode amar, ou ao menos para deixarmos de saber que uma pedra não pode amar. De amor falamos muito. É uma das palavras mais usadas e abusadas. Pervertidas também. As pessoas que não acreditam em realidades transcendentes não deviam interrogar-se sobre a sua existência. Basta pensar no amor, para que tudo o resto, desde o país das maravilhas até ao reino dos céus, se torne coisas comuns. Coisas tão comuns como pedras. A pedra está ali, existe antes de nós, partindo do pressuposto que existe, e depois de nós continuará a existir. Talvez por isso as pedras não precisem de amar, Não precisam de ter nenhuma ilusão de vida eterna. Mesmo morrendo, que ao que parece nada fica sendo sempre aquilo que num determinado momento é, não precisam de amar, pois até prova em contrário, mas sabemos pouco sobre pedras, nenhuma pedra sabe que vai morrer. Os animais, ao que parece, também não, ainda que os cisnes cantem antes do momento final, quando parecem estar sabendo que a sua hora chegou, cantam e algum poeta mais amante dos animais poderia ver nesse canto o nascimento do amor. Os seres humanos, esses, sabem que vão morrer. Sabem-no desde muito cedo. E por isso precisam do amor. Para que a vida, que é penosa e breve, tenha um sentido qualquer que a ultrapasse. Somos os fugitivos da morte. Viver talvez nem seja outra coisa. O amor é só um abrigo que procuramos para não ter que continuar a fugir. E por isso, no fundo, queremos um amor eterno, queremos um amor que dure sempre, mesmo que seja apenas eterno enquanto dure, absurdo que parece possível no reino do amor, mesmo que o não seja. Queremos amar uma pedra, porque a pedra estará sempre ali enquanto o nosso amor durar. Amar uma pessoa é outra coisa e mais difícil ao que parece. Amar é desejar ser amado, já foi dito. Mas desejar ser amado não parece ser verdadeiramente amar. Seria talvez mais eficaz amar o amor. E ser esse amor no nosso amor. Todo o amor é imitação de um amor maior. Não amaríamos se o amor não nos antecedesse. Se o amor não estivesse já presente antes do nosso amor. A existência do amor é condição prévia à expressão do nosso amor. Por isso dizemos que o amor não se explica. Porque só o amor poderia explicar o amor.

a primeira vez

Tira o chapéu, pediu-me ele.
Olhei-o atrapalhada; pareceu não notar.

Tira o chapéu, voltou a pedir, suavemente.
Não sei porque não entendeu que os meus olhos se perdiam nos seus à espera de um qualquer sinal.

Lentamente, contudo, tirei o chapéu e sorri-lhe, lembrada do seu corpo, do seu cheiro, da sua boca, quando fazíamos amor.

Agora, tira a camisola, disse, e ficou a olhar-me como se, de repente, tivesse compreendido o meu embaraço e esse facto o enchesse de prazer.
Dentro de mim alguma coisa explodiu e o meu coração desatou aos pulos. Conhecia aquele homem, pensei, conhecia-o de cor. Apesar disso, senti como se aquela fosse a primeira vez.

Nas mãos do pintor I

Kiss (Nikolay Antonov)

Nas palavras do poeta I

Eu cantaria mesmo que tu não existisses,
faria amor, assim, com as palavras.
Eu cantaria mesmo que tu não existisses
porque haveria de doer-me a tua ausência.

Por isso canto. Alegre ou triste, canto.
Como se, cantando, tocasse a tua boca,
ainda antes da tua presença.
Direi mesmo, depois da tua morte.

Eu cantaria mesmo que tu não existisses,
ó minha amiga, doce companheira.
Eu festejo o teu corpo como um rio,
onde, exausto, chegarei ao mar.

Sim, eu cantaria mesmo que tu não existisses,
porque nada eu direi sem o teu nome.
Porque nada existe além da tua vida,
da tua pele macia, dos teus olhos magoados.

Assim quero cantar-te, meu amor,
para além da morte, para além de tudo.

Joaquim Pessoa

Derrida, le qui et le quoi.